Ano A – Quinta-feira Santa: Missa da Ceia do Senhor

1ª Leitura: Ex 12, 1-8. 11-14;
Salmo: Sl 115, 12-13;
2ª Leitura: 1 Cor 11, 23-26;
Evangelho: Jo 13, 1-15.


Com a celebração da Missa Vespertina da Ceia do Senhor iniciamos o Tríduo Pascal. A celebração do Tríduo Pascal, onde fazemos memória da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, pode ser considerada uma única celebração em três momentos diferentes: Missa Vespertina da Ceia do Senhor, Celebração da Paixão do Senhor e Vigília Pascal. Não podemos e não devemos separar a celebração destes mistérios. Na verdade, a Cruz de Cristo só é compreensível à luz da ressurreição e a ressurreição de Cristo sem a Cruz seria algo vazio de significado. Assim sendo, a celebração de hoje, onde fazemos memória da instituição da eucaristia, da instituição do sacerdócio e do mandamento novo do amor, é a chave de leitura que nos permite compreender o sentido que Jesus atribuiu ao seu Mistério Pascal.

Na verdade, Jesus não se limitou a viver passivamente a sua morte. Um dos verbos que ocupa um lugar de relevo nos relatos da Paixão é o verbo entregar. A Cruz de Cristo é a história das entregas: as humanas e as divinas. Ao lermos os relatos da Paixão, deparamo-nos com o facto de Jesus ser entregue de mão em mão. Judas entrega-O aos Príncipes dos Sacerdotes, estes entregam-n’O a Pilatos e Pilatos entregou Jesus para ser crucificado.

No entanto, há outras entregas mais misteriosas e mais sublimes que conduzem Jesus até à Cruz. A Cruz de Cristo é a história trinitária das entregas: O Pai, por amor, entrega o Filho às mãos dos pecadores para o crucificarem. O Filho, numa fidelidade amorosa, auto-entrega-se à morte. O Espírito é entregue ao Pai, na Sexta-feira Santa, para que o Filho viva em total comunhão com os exilados de Deus e os leve de novo à comunhão com Deus, no Domingo de Páscoa, quando o Pai entregar de novo o Espírito ao Filho.

Jesus entrega-se, livre e generosamente, ao Pai pelos homens. Prova desta auto-entrega de Jesus, deste acto supremo de si pelos homens, são os relatos da instituição da Eucaristia: “Isto é o meu Corpo, entregue por vós.” Um dos quatro relatos de instituição da eucaristia é o de Paulo que é proposto como segunda leitura deste dia. Esta é a primeira narração escrita da instituição da eucaristia. Na verdade, os evangelhos são posteriores a esta carta.

Paulo vê-se na necessidade de resolver um problema na comunidade de Corinto. Quando os Coríntios se reuniam para celebrar a eucaristia cometiam alguns abusos. O primeiro desses abusos eram as divisões que existiam na comunidade (cf. 1 Cor 11, 18-19). O segundo abuso relacionava-se com a relação entre a refeição profana e a Ceia do Senhor (cf. 1 Cor 11, 20-22). Nesses tempos a eucaristia celebrava-se em casas particulares e costumava ser precedida por uma refeição em comum. O problema é que os mais ricos da comunidade traziam os seus alimentos e começavam a comer antes de chegarem os mais pobres e necessitados. Em vez de esperarem que a assembleia estivesse completa e que os alimentos trazidos por uns e por outros fossem distribuídos equitativamente, os mais ricos apressavam-se a comer a sua parte sem esperar a chegada dos mais pobres, que devido aos seus trabalhos e ocupações se atrasavam. E era assim, estando uns satisfeitos e muitas vezes bêbados e outros famintos, que os coríntios celebravam a eucaristia. No entanto, esta eucaristia não era sinal de comunhão, mas ocasião de descriminações na comunidade.

É ante estes problemas de divisão e de discriminações que Paulo apela para a tradição da instituição da eucaristia que ele próprio recebeu, evocando o espírito com que Jesus instituiu a eucaristia. Jesus não procura o seu próprio interesse mas entrega-se à morte por nós.

A eucaristia é dom para a vida do mundo, é “o memorial da sua morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal no qual se recebe Cristo” (Sacrosanctum Concilium, 47). A celebração da eucaristia é a principal manifestação do Corpo de Cristo que é a Igreja. Assim sendo, devemo-nos examinar sobre a forma como celebramos a eucaristia. As nossas eucaristias são celebradas no espírito de Jesus que se entrega por nós à morte ou são celebradas no meio de divisões, descriminações e injustiças? Será que quando celebramos a eucaristia estamos na disponibilidade de nos oferecermos a nós mesmos como sacrifício agradável a Deus?

Muitas vezes parece que nos esquecemos que a eucaristia cria e manifesta a comunhão, comunhão com Cristo e comunhão com todos aqueles que comungam do mesmo pão e do mesmo cálice.

É curioso o facto que o evangelista João substitui a instituição da eucaristia pelo eloquente gesto do lava-pés. O episódio do lava-pés narrado pelo evangelista João é de uma grande solenidade e de uma grande intensidade. No início de tudo está o amor de Jesus pelos seus. Na verdade, o amor de Jesus não é um amor a meias medidas mas um amor até ao extremo. Impulsionado por este amor, Jesus levanta-se e depõe o seu manto. É curioso que o verbo que João utiliza para descrever a acção de Jesus depor o manto é o mesmo verbo que no discurso do bom pastor João utiliza para dizer que o bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas.

Depois de ter tirado o manto Jesus começa a lavar os pés aos seus discípulos. Esta acção não deixa de ser vista como um escândalo pelos seus discípulos. Se o oferecer água a um hóspede para lavar os pés podia ser visto como um acto de cortesia e se em alguns casos um servo ou um discípulo dedicado o podia fazer ao seu mestre, jamais o Senhor lavava os pés aos seus servos ou o mestre aos seus discípulos. No entanto, Jesus inverte totalmente os papéis. Na verdade, Jesus não veio para ser servido e para servir. Toda a sua vida é um serviço aos demais. Terminado o lava-pés Jesus volta a colocar o manto quase a prefigurar a sua ressurreição. A acção do lava-pés é um ensinamento de humildade dado por Jesus aos apóstolos, ilustrando de forma concreta o mandamento novo do amor. Jesus, ao lavar os pés aos discípulos, revela o verdadeiro sentido da sua missão: como servo, dar a vida.

Pedro não queria aceitar o acto do lava-pés. Na verdade, ainda não tinha percebido a lógica do serviço. A nossa vida deve ser um serviço aos outros. Ser discípulo de Jesus, tomar parte com Jesus é assumir a atitude de serviço que caracterizou toda a vida de Jesus. Na verdade, as palavras de Jesus, “Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também”, não podem cair no esquecimento mas tem de ser o projecto de vida de todos aqueles que celebram a eucaristia. É por isto, que depois da homília, o presidente da celebração lava os pés a doze pessoas. Este gesto não é uma representação dramática do que Jesus fez aos seus discípulos mas é um gesto que manifesta as atitudes de recíproco serviço e de fraterno acolhimento que devem existir em todas as comunidades cristãs.

A celebração deste dia leva-nos a descobrir que nem sempre a nossa vida é uma vida eucarística. Vários são os momentos em que estamos longe daquela comunhão com Deus e com os homens que se traduz numa vida de serviço e de entrega à humanidade. Como Jesus no Getsémani, também nós temos de rezar para nos irmos conformando com a vontade de Deus, para fortalecermos a nossa fé e o nosso serviço. É por isso que ao final da celebração deste dia, o Santíssimo Sacramento, a presença real, fortificante e constante de Jesus connosco, é levado em procissão para um lugar à parte onde podemos estar sozinhos em oração. Nunca adoraremos efectivamente a não ser que tenhamos aprendido a rezar em particular. Nunca serviremos o nosso próximo com verdadeiro amor a não ser que tenhamos uma relação pessoal com Jesus.

P. Nuno Ventura Martins

missionário passionista

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