REFLEXÃO: Paixão, Morte e Ressurreição segundo S. Marcos

Ao aproximarmo-nos da semana em que celebramos os acontecimentos mais santos e maiores da nossa fé e da nossa salvação, somos convidados a entrar em contacto com os relatos da Paixão Morte e Ressurreição do Senhor. Neste ano litúrgico, é o relato da Paixão de Marcos que somos convidados a frequentar. Aproximemo-nos sem preconceitos e prejuízos, com a curiosidade e a audácia própria dos exploradores, deste tão desconhecido mas conhecido relato. Desconhecido porque apesar de o termos já escutado ou mesmo lido muitas vezes nunca conseguiremos esgotar a sua mensagem. Conhecido, porque outra coisa não narra ele senão a nossa história: a nossa história de pecado mas também a nossa história de salvação. História de pecado, porque na Paixão de Cristo está exposta a nossos olhos “a espessura das nossas raivas e dos nossos ódios, da nossa malicia, da nossa violência, da nossa mentira, da atracção e do fascínio, quem diria, que sobre nós exerce a morte” (António Couto). História de Salvação, porque a cruz de Cristo não se limita a denunciar o pecado. A Paixão de Cristo é a obra maior e mais maravilhosa do amor divino e por isso o remédio mais eficaz contra os males de todos os tempos (São Paulo da Cruz). Na cruz, descobrimos o amor apaixonado de Deus por todos nós, amor esse que nos reconcilia e reconstrói as nossas existências.

Começa o relato da Paixão de Marcos com a conspiração dos Judeus (Mc 14, 1-2). Na verdade, Jesus de Nazaré, na relação com o mundo social e político do seu tempo, revela uma profunda liberdade. A fonte dessa liberdade, que caracteriza toda a sua vida e todas as suas acções, é a sua opção pelo Reino. Tal forma de ser e estar na vida era uma forte interpelação para os sumo-sacerdotes e doutores da lei. Jesus era uma pedra no sapato para esta classe dirigente e por isso tinha de desaparecer, nem que para isso seja necessário recorrer à traição.

Segue-se a unção de Betânia (Mc 14, 3-11) que antecipa a sepultura de Jesus. É este gesto generoso da mulher que parte um vaso de alabastro e derrama o nardo sobre a cabeça de Jesus que leva Judas a ir ter com os príncipes dos sacerdotes para lhes entregar Jesus. A um gesto de amor de uma desconhecida para com Jesus contrapõe-se a traição de Judas, um dos doze. Ao gesto generoso da mulher contrapõem-se a ganancia, a lógica do lucro de Judas.

Jesus é entregue de mão em mão. É entregue por Judas aos judeus (Mc 14, 10). Os judeus entregam-no a Pilatos (Mc 15, 1) e por fim Pilatos entrega-o aos soldados para ser crucificado (Mc 15, 15). No entanto, a história da Paixão de Jesus não se limita à história das entregas humanas. Se assim fosse, a Paixão e a Morte de Jesus mais não seria do que uma das muitas mortes injustas que ainda hoje ocorrem. Ao lado das entregas humanas encontramos as entregas divinas. É o Pai que por amor entrega o Seu Filho à morte (Mc 9, 31; Mc 10, 33; Mc 14, 41; Mt 26, 45; Jo 3, 16; Rm 8, 32). É o Filho que voluntariamente entrega a sua vida por nosso amor (Lc 23, 46; Jo 19,30; Gl 2, 20; 1 Tm 2, 6; Tt 2, 14; Ef 5,2). É o Espírito que é entregue pelo Filho na Sexta-feira Santa (Jo 19, 30; Heb 9, 14; Act 10, 38.40).

Segue-se, no relato da Paixão de Marcos, a preparação e a ceia Pascal (Mc 14, 12-31). Começa este episódio com a pergunta: “onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?”. Celebrar a Páscoa e celebrar a eucaristia exige preparação. A última ceia e a instituição da eucaristia é o critério de interpretação do relato da Paixão e do Mistério Pascal: corpo entregue e sangue derramado por vós. É a eucaristia que faz a Igreja. A eucaristia é o memorial do mistério pascal, é comunhão com Cristo e comunhão com os irmãos. Quem celebra eucaristia deve aprender a ter um estilo de vida eucarístico, ou seja, um estilo de vida marcado pela gratuidade e entrega serviçal. Quem celebra eucaristia deve pensar antes nos outros do que em si. No entanto, é no decorrer da última ceia, marcada pelo amor e pela intimidade, que Jesus anuncia a traição de Judas, a negação de Pedro e o abandono dos discípulos. Interpela-nos este facto. Na verdade, não é por eu celebrar eucaristia que estou imune de trair Jesus.

Terminada a última ceia, Jesus dirige-se para o horto das oliveiras para aí rezar (Mc 14, 32-42). Marcos apresenta-nos, no Getsémani (lagar de azeite), um Jesus humano com pavor e angústia ante a morte. No entanto, este pavor e angústia não levam Jesus ao desespero mas à oração, ao diálogo com Deus. Nesta sua oração no jardim das oliveiras, Jesus não só recomenda-nos a oração mas também nos ensina a rezar. A nossa oração deve ser uma oração filial. É esta a especificidade da oração cristã. Devemos rezar a Deus como um filho fala com o seu pai, com confiança e ternura. No entanto, a nossa oração não é uma forma de convencermos Deus das nossas vontades mesquinhas e egoístas. A oração, que deve ser persistente, é um momento de agonia e de luta, é um momento onde eu me vou conformando com a vontade de Deus. O resultado da oração é a força e a coragem necessária para enfrentar as situações. Na verdade, depois de rezar, não são os guardas que tomam a iniciativa de prender Jesus. É Jesus que voluntariamente se aproxima do cortejo que vem para o prender. É Jesus que entrega voluntariamente a sua vida por amor.

A cena da prisão de Jesus (Mc 14, 43-52) começa com a traição de Judas. Judas, um discípulo é aquele que trai Jesus e trai-o com o beijo. A traição de Judas é uma forte interpelação para todos nós. Não é por andarmos com Jesus que estamos livres de o trair. Devemos perguntar-nos quais são as nossas verdadeiras motivações para seguir Jesus. Judas traiu Jesus com um beijo, com um gesto de amor, de amizade, de dedicação do discípulo para com o mestre. Pode acontecer que também nós, muitas vezes, estejamos a profanar e a prostituir gestos de verdadeiro amor e de amizade. Neste momento, há alguém que tenta resolver a situação com a violência, ferindo um criado do sumo-sacerdote. A violência é tão descabida que Jesus nem se refere a ela. É neste contexto que todos os presentes abandonam Jesus. Aqueles que tinham deixado tudo para seguir Jesus, deixam o seu tudo e fogem perdidos e sós no meio da noite. Narra-nos S. Marcos o episódio do jovem envolto apenas num lençol que ante a tentativa de prisão foge nu. É uma cena interpelante. Na verdade, este jovem, que muitos pensam tratar-se do próprio evangelista Marcos, tem muitas parecenças com o anjo que no Domingo de Páscoa aparecerá às mulheres. Assim sendo, esta cena pode querer-nos indicar que apesar de Jesus ser preso e ser condenado a morte não o irá capturar. Ele ressuscitará ao terceiro dia. No entanto, o lençol que envolve o jovem também nos pode evocar a veste branca que os baptizados recebem no dia do seu baptismo. Muitas vezes, também nós abandonamos Jesus, deixamos a nossa veste baptismal e fugimos nus e débeis pelo mundo.

Depois de ser preso, Jesus é apresentado ao tribunal Judaico (Mc 14, 53-65). Jesus é julgado pelo sinédrio e pelos sumo-sacerdotes mas a condenação já estava de antemão decidida. É por isso que se apresentam muitas testemunhas falsas, mas porque o seu testemunho se baseia na mentira e não na verdade o seu testemunho não concorda. O maquiavelismo de quem, para atingir os seus fins, utiliza todos os meios mesmo que fraudulentos não é uma história só de ontem mas também de hoje. A estas falsas testemunhas Jesus responde com o silêncio. Ele é o servo sofredor (Is 53). Ele sabe que há ocasiões em que qualquer palavra que se diga só gera mais violência. Há que esperar pelo momento oportuno para dizer a palavra oportuna. No entanto, o silêncio de Jesus termina quando o Sumo-sacerdote interroga-o sobre a sua identidade: “És tu o messias, Filho do Deus bendito? Jesus respondeu: Eu sou. E vós vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo-poderoso vir sobre as nuvens do céu”. Jesus que sempre foi tão cuidadoso e pediu silêncio quando alguém dizia que ele era o Messias, diz agora claramente que é o Messias, o Filho de Deus e o Filho do Homem. Na verdade, sob a sombra da cruz Jesus pode afirmar agora claramente que é o Messias. Jesus é o Messias Crucificado e não o Messias violento.

Contrasta com este testemunho corajoso de Jesus as negações de Pedro (Mc 14, 66-72). Pedro começou a seguir Jesus de longe e tudo começa a complicar-se quando começamos a seguir Jesus de longe. E como se isso não bastasse, Pedro ainda se foi colocar num ambiente perigoso. Às vezes, é preciso ser corajoso ao ponto de fugir das ocasiões de pecado. E nesse ambiente perigoso, Pedro nega, por três vezes, conhecer Jesus. As negações não são todas iguais. Começa por um fazer-se desentendido e termina com um juramento e imprecações. Jesus tinha advertido Pedro que antes do galo cantar duas vezes, Pedro três vezes o teria negado. No entanto, quando o galo canta por primeira vez, Pedro não se recorda da advertência. Muitas vezes podem estar a cantar muitos galos advertindo-nos e tentando-nos despertar das nossas pequenas traições e nós não nos apercebemos. No entanto, quando o galou cantou por segunda vez Pedro recordou-se das palavras de Jesus, arrependeu-se e começou a chorar. O galo anuncia o nascimento do novo dia e, nas lagrimas do arrependimento e da conversão, começa a nascer um novo dia para Pedro.

De manhã cedinho, apresentam Jesus a Pilatos e Jesus é julgado por Pilatos (Mc 15, 1-15a). Ante Pilatos, Jesus mantem o silêncio do servo sofredor. Tal silêncio volta a ser quebrado para responder à questão da identidade. No entanto, Jesus dá uma resposta ambígua a pergunta de Pilatos porque ambígua é a compreensão de Pilatos.

Pilatos sabe da inocência de Jesus e por isso quando o povo pede que Pilatos cumpra a tradição de soltar um dos prisioneiros por altura da Páscoa, Pilatos propõe que se liberte Jesus. No entanto, o povo, por influência dos sumo-sacerdotes, pediu que Pilatos libertasse Barrabás e condenasse Jesus. O mesmo povo que antes tinha aclamado Jesus como o enviado de Deus pede agora, por influência dos sumo-sacerdotes, que Jesus fosse condenado. Muitas vezes dizemos que somos livres mas até que ponto o somos? As nossas decisões são livres ou são pressionadas e influenciadas pela opinião pública? Penso pela minha cabeça ou deixo que os outros pensem por mim?

O texto diz-nos que Pilatos sabia que tinha sido por inveja que os sumo sacerdotes lhe tinham entregado Jesus. Muitas vezes as nossas invejas levam-nos a fazer coisas terríveis. A inveja não é um sentimento evangélico. Devemos alegrar-nos e não entristecer-nos com o sucesso dos outros.

Pilatos que estava convencido da inocência de Jesus acaba por condenar Jesus a morte. Pilatos tem o coração dividido e no fim faz prevalecer os seus interesses e a sua posição social sobre a justiça e o direito. Por medo de perder os seus privilégios, por não ter a coragem de ir contra a mentalidade dominante, Pilatos condena um inocente. Ainda hoje isto continua a acontecer sempre que preferimos o sucesso à verdade, a nossa reputação à justiça.

Entre a condenação à morte e Jesus que carrega a sua cruz, está a cena da flagelação e da coroação de espinhos (Mc 15, 15b-20a). A flagelação não é descrita mas só mencionada. Sabemos que a prática da flagelação era uma prática que antecedia a crucifixão e que era uma cena muito violenta. Só de imaginar a cena muitos se sentem arrepiados. No entanto, a flagelação ainda é uma realidade de hoje. Cristo, ainda hoje, continua a ser crucificado no seu corpo místico que é a Igreja. Cristo continua a ser flagelado na sociedade hodierna. Ele disse-nos que sempre que fizéssemos algo a um dos irmãos mais pequeninos era a ele que o fazíamos (Mt 25, 40. 45). Os chicotes de hoje são diferentes dos de antes mas não menos dolorosos. Os chicotes de hoje têm nomes diferentes: toxicodependência, alcoolismo, prostituição, aborto, … Se nos comovemos e arrepiamos ao recordar a flagelação histórica de Jesus também não nos deveríamos inconformar com as flagelações actuais? Que faço para defender a dignidade da pessoa humana?

À dilaceração da carne pela flagelação, segue-se um outro tormento não menos doloroso: Jesus é coroado de espinhos, Jesus é humilhado e gozado. Os soldados troçam com aquilo que Jesus é. Os soldados gozam Jesus por ele ser o rei dos judeus. Por isso colocam-lhe uma coroa de espinhos e um manto de purpura e começam a saúda-lo ironicamente. A cena da coroação de espinhos desmascara e denuncia tantos sofrimentos que fazemos passar os nossos irmãos com o nosso desprezo, ironia, troça e brincadeiras de mau gosto que ofendem a sua dignidade. No entanto, na sua troça os soldados estão a dizer uma grande verdade. Jesus é Rei e é rei exactamente pelo caminho da cruz. Que Cristo humilde, que não responde à violência com a violência, nos ensine a ser humildes e nos ensine a quebrar o círculo da violência com o perdão.

Depois de ser flagelado e escarnecido, Jesus sai a caminho do calvário com a cruz às costas (Mc 15, 20b-22). Jesus caminha com a cruz para fora da cidade. Ainda hoje muitos dos nossos irmãos que são crucificados são colocados fora das cidades, são colocados na periferia para não nos incomodarem. Muitas vezes em vez de resolvermos os problemas que causam o sofrimento preferimos esconde-los para não nos incomodarem.

Jesus com a cruz às costas é a imagem do discípulo. Ele tinha advertido os discípulos: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8, 34). A cruz é o resultado do amor e da fidelidade a Deus e aos irmãos.

No seu caminho em direcção ao calvário, Cristo é ajudado por Simão de Cirene a levar a cruz. Não deve ter sido uma ajuda voluntária. No entanto, esta ajuda transformou Simão de Cirene. Marcos, ao referir que Simão era Pai de Alexandre e de Rufo, dá-nos a entender que estes eram membros da comunidade cristã. O contacto com a cruz de Cristo ou com a cruz dos irmãos, mesmo que muitas vezes comece por ser forçado, transforma-nos. Hoje sabemos que mais do que sermos nós a levar a cruz a Jesus é Jesus que nos ajuda a levar a nossa cruz. No entanto, isto não isenta a Igreja da sua responsabilidade de ser cireneu. A Igreja deve ajudar a levar a cruz de Jesus, dos crucificados de hoje.

Chegados ao calvário Jesus é crucificado, escarnecido e morre (Mc 15, 23-41). Quando chega ao calvário os soldados querem dar a Jesus vinho misturado com mirra para entorpecer Jesus e atenuar o seu sofrimento. No entanto, Jesus não quer beber. Jesus quer enfrentar o momento da sua morte conscientemente. Na verdade, é porque quer e é conscientemente que Jesus oferece a sua vida para nossa salvação.

Depois, Jesus é despojado das suas vestes. A roupa confere ao homem a sua posição social mas até das suas vestes Jesus é despojado. São tantos aqueles que ainda hoje são espoliados para aumentarem os roupeiros de outros. Jesus despojado das suas vestes é uma forte interpelação para o valor do despreendimento, para a defesa da dignidade humana.

Sobre a cruz de Jesus, colocaram uma inscrição: “o rei dos judeus”. É esta inscrição que nos permite ler a cruz de Cristo. A cruz de Cristo é o trono do nosso rei. O nosso Deus é o Deus crucificado.

Jesus é crucificado no meio de dois ladrões. Jesus sempre procurou os pecadores, ele não veio chamar os justos mas os pecadores pois são os doentes que necessitam de médico (Mt 9, 9-13). Jesus solidariza-se com todo o homem que sofre, padece e está em agonia.

Ao contemplarmos a imagem do crucificado vemos como o amor de Deus abraça todo o mundo e abraça-o sempre. É por nós, porque nos ama a todos, independentemente das nossas virtudes e pecados, que Jesus está pregado na cruz.

No entanto, ao contemplarem esta cena a multidão parece gozar deste espectáculo macabro e começa a fazer troça. Muitas vezes parece que o sofrimento dos outros mais que compaixão suscita em algumas pessoas um prazer macabro. Diante do sofrimento do outro, muitos homens  em vez de ajudarem o que sofre escarnecem dele. É o gosto pela morte que nos habita. Tudo isto demonstra a superficialidade, a curiosidade banal, a busca de emoções forte, a crueldade pura e dura que tantas vezes nos habita. No entanto, apesar de ser escarnecido Jesus não desce da cruz e não desce da cruz para nos salvar. Ele entrega-se à morte para nos salvar. Ele não pensa apenas em si de uma forma egoísta. Ele pensa em nós. Todos nós, por muito pecadores que sejamos somos importantes, muito importantes para Deus. Além disto, Jesus não desce da cruz num golpe de teatro porque quer que a nossa fé não seja fundada num prodígio mas na liberdade e no amor.

Enquanto Jesus está crucificado as trevas envolvem a terra. Mais que naturais estas trevas são teofânicas. Quando desejamos matar Deus, arrancar Deus da nossa vida não ficamos noutra situação senão nas trevas do desespero.

Jesus crucificado grita: “Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?”. Quem grita é porque espera ser ouvido. Mesmo no momento de maior ausência, Jesus continua a acreditar na presença de Deus e continua a dirigir-se a Ele. Também nós no meio das nossas dificuldades, quando parece que somos abandonados devemos continuar a ter a mesma coragem e confiança, devemos continuar a acreditar que Deus está connosco. Diz assim uma oração da Igreja: “Porque Ele está connosco / Nos dias de fraqueza, / Ninguém espere conservar o alento / Sem O chamar… / De mãos ao alto, / Gritemos para Ele a nossa angústia. / Prostremo-nos, orando, aos pés d’Aquele / Que apaga em nós as manchas do pecado.”

Depois, diz-nos o evangelista Marcos, que Jesus deu um forte grito e expirou. Um grito nas condições físicas em que Jesus se encontrava é pouco provável. No entanto, este é o grito da manifestação de Deus. Na verdade, é ao ver como Jesus morre que o centurião, um pagão, reconhece: “Na verdade, este homem era filho de Deus.” Além da confissão de fé do centurião, a morte de Jesus também provocou que o véu do templo se rasgasse. O rasgar da cortina que resguardava o santo dos santos, o lugar da habitação de Deus, mostra que o culto antigo com os seus compartimentos e segredos terminou. O acesso a Deus é agora claro.

Ante a morte de Jesus nada e ninguém pode ficar indiferente. A morte de Jesus grita alto de mais. A morte de Jesus é o grito do amor apaixonado de Deus por nós. Na cruz de Cristo vemos quem é Deus: um Deus que nos ama até a loucura da cruz. O centurião ao ver Cristo a morrer na cruz reconhece-o como filho de Deus. Poderás ficar indiferente a tanto amor?

Depois da morte de Jesus segue-se a sua sepultura (Mc 15, 42-47). Se os romanos não se preocupam com a sepultura o mesmo não podemos dizer dos judeus. Para os judeus dar sepultura era uma obra de misericórdia. Marcos refere a coragem de José de Arimateia em ir pedir o corpo de Jesus a Pilatos para lhe dar sepultura. Na verdade, é a morte de Jesus que infunde coragem e dá ousadia a este membro do conselho que esperava o reino de Deus. E nesta situação é preciso coragem para cumprir esta obra de misericórdia porque defender uma pessoa que toda a gente defende é fácil, difícil é defender uma pessoa condenada ante aquele que a condena.

Descido da cruz, Jesus é levado a sepultar num sepulto escavado na rocha. Depois de o sepultar colocam, à entrada do sepulcro, uma pedra. A pedra que é colocada à entrada do sepulcro é para muitos o ponto final que se coloca na história de Jesus. Entramos no silêncio de Sábado Santo. Jesus entra no seio escuro da terra. É o dia da aparente vitória da Morte. É o dia da ausência da esperança. Ainda hoje, há pessoas que vivem num longo sábado santo de desespero, onde se pensa que a morte é mais forte que a vida, que o ódio é mais forte que o amor, que a violência é mais forte que a ternura, que o desespero é mais forte que a esperança. Ainda hoje há tantas situações que esperam ansiosamente pela luz ressuscitada e ressuscitadora do Domingo de Páscoa.

E é com esta luz que inicia a narração da ressurreição (Mc 16, 1-8). Diz-nos o texto que é no primeiro dia e ao nascer do sol que as mulheres se dirigem ao sepulcro. O primeiro dia e o nascer do sol evocam algo novo, indicam o surgimento de uma nova criação. Na verdade, com a ressurreição do Senhor é a nova criação que começa.

No entanto, as mulheres que se dirigem até ao sepulcro ainda vão num cortejo fúnebre. Os perfumes que levam é para embalsamar o corpo de Jesus. Para elas a morte é aquela pedra grande de mais que nada nem ninguém pode remover. No entanto, este cortejo de morte vai-se transformar num cortejo de vida. E essa transformação ocorre quando as mulheres vêem a pedra do túmulo removida e entrando no sepulcro ouvem a interpretação dos factos acontecidos pelo anjo: “Não vos assusteis! Buscais a Jesus de Nazaré, o crucificado? Ressuscitou, não está aqui.” Deus venceu a morte, Deus tirou a grande pedra que estava a entrada do sepulcro, Cristo Ressuscitou. Ao verem o anjo as mulheres sentem medo. É o temor sagrado de quem entra em contacto com algo que as transcende. Mas a estas mulheres medrosas o anjo diz para não temerem e diz-lhes que Cristo os precede a caminho da Galileia, a caminho do lugar onde tudo começou. A ressurreição estimula o recomeço que é consumação.

O encontro com o ressuscitado transforma-nos e devolve-nos a esperança. Na verdade, a ressurreição de Jesus é a prova de que a vida é mais forte que a morte, que o amor é mais forte que o ódio, que a ternura é mais forte que a violência, que a esperança dissipa todo o desespero. Quem se encontra com o Senhor Ressuscitado vê toda a sua vida transformada e por isso sente-se na necessidade de fazer visitas pascais, ou seja, sente-se na necessidade de levar aos outros que ainda habitam na região da morte a notícia da ressurreição que vence a morte que nos habita e nos arranca dos sepulcros em que nos encontramos. “Somos nós Senhor, somos nós, a prova de que tu ressuscitaste.” Quem experimentou a força da Páscoa na sua vida sente-se na necessidade de anunciar aos outros tão feliz e fundamental notícia para que a Páscoa do Senhor seja realidade neste nosso mundo.

Que a nossa atitude, depois de ler e meditar no relato da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus seja a mesma dos destinatários do discurso de Pedro, no dia de Pentecostes: “Ouvindo estas palavras, ficaram emocionados até ao fundo do coração e perguntaram a Pedro e aos outros Apóstolos: «Que havemos de fazer, irmãos?» ” (Act 2, 37).

P. Nuno Ventura Martins

missionário passionista

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