Ano C – III Domingo do Tempo Comum

1ª Leitura: Ne 8, 2-4a. 5-6. 8-10;
Salmo: Sl 18 B (19), 8. 9. 10. 15;
2ª Leitura: 1 Cor 12, 12-30 ou 1 Cor 12, 12-14. 27;
Evangelho: Lc 1, 1-4: 4, 14-21.

Começamos, neste terceiro Domingo do Tempo Comum, a leitura contínua do evangelho de S. Lucas que nos acompanhará até ao final deste ano litúrgico. Depois do ciclo do Natal e antes da pausa do ciclo da Páscoa onde se escuta de forma descontínua alguns episódios do evangelho de Lucas, o Tempo Comum oferece-nos de uma forma ininterrupta, domingo após domingo, episódio após episódio, a vida e a mensagem do Senhor Jesus. Tal leitura contínua além de proporcionar-nos a oportunidade de contemplar de perto os mistérios da vida do Senhor também é um convite a entrarmos na aventura fascinante do seguimento de Jesus à luz do evangelho de Lucas.

Talvez porque hoje iniciamos esta leitura ininterrupta do evangelho de Lucas, a liturgia da Igreja achou por bem oferecer-nos, na primeira parte do evangelho deste Domingo e antes da narração do início do ministério de Jesus, o prólogo do evangelho de Lucas. Na verdade, os quatro primeiros versículos do evangelho deste Domingo são os versículos introdutórios da obra lucana (Cf. Lc 1, 1-4). Nestes versículos, Lucas, assemelhando-se aos historiadores da época clássica, oferece-nos um prólogo literário onde apresenta a sua obra indicando a finalidade e os critérios seguidos na sua elaboração.  

O seu evangelho não é fruto da imaginação mas é o resultado de uma investigação cuidada “dos factos que se realizaram entre nós”. Assim sendo, o evangelho de Lucas não nos oferece mitos e lendas mas um acontecimento histórico concreto: o acontecimento Jesus de Nazaré. Lucas dedica esta sua obra ao “ilustre Teófilo”. Pensamos que, mais do que uma personagem individual que tenha financiado a elaboração do evangelho de Lucas, Teófilo seja uma personagem colectiva. Etimologicamente Teófilo significa “amigo de Deus”. Assim sendo, podemos afirmar que Lucas dedica a sua obra a todos os crentes, a todos os amigos de Deus para os ajudar no seu seguimento do Senhor Jesus. Lucas sente-se na necessidade de colocar por escrito o resultado da sua investigação “para que tenhas conhecimento seguro do que te foi ensinado”. Assim sendo, a finalidade do evangelho é fortificar a fé dos crentes. Não nos podemos esquecer que o evangelho de Lucas foi escrito cerca do ano 80, época em que o cristianismo, depois da morte das testemunhas oculares do acontecimento Jesus de Nazaré, se via ameaçado por uma série de heresias, ou seja, erros doutrinais.

É este texto dedicado a Teófilo, nascido da investigação cuidadosa e com o objectivo de fortificar a fé dos crentes que, Domingo após Domingo, iremos escutar. Mas qual será a maneira mais correcta de nos aproximarmos da Palavra de Deus que nos é oferecida? Como deve ser a nossa relação com a Palavra de Deus proclamada? A primeira leitura do livro de Neemias e a segunda parte do evangelho deste Domingo indicam-nos a forma adequada de nos relacionarmos com a palavra de Deus proclamada e convidam-nos a um sério exame de consciência sobre a forma como estamos a viver a nossa relação com a Palavra de Deus.

Não deixa de ser interpelante o seguinte comentário de São Jerónimo: “Lemos as Sagradas Escrituras. Eu penso que o Evangelho é o Corpo de Cristo; penso que as santas Escrituras são o seu ensinamento. E quando Ele fala em ‘comer a minha carne e beber o meu sangue’, embora estas palavras se possam entender do Mistério [eucarístico], todavia também a palavra da Escritura, o ensinamento de Deus, é verdadeiramente o corpo de Cristo e o seu sangue. Quando vamos receber o Mistério [eucarístico], se cair uma migalha sentimo-nos perdidos. E, quando estamos a escutar a Palavra de Deus e nos é derramada nos ouvidos a Palavra de Deus que é carne de Cristo e seu sangue, se nos distrairmos com outra coisa, não incorremos em grande perigo?”.

Não poucas vezes desperdiçamos, pela nossa negligência e distracção, a Palavra que Deus dirige a cada um de nós na liturgia da Palavra. Na verdade, “quando na Igreja se lê a Sagrada Escritura é Ele [Cristo] quem fala” (Constituição do Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia, 7). 
Para que não desperdicemos a Palavra proclamada, a primeira leitura deste Domingo, retirada do livro de Neemias, indica-nos três verbos/momentos que marcam o itinerário correcto da relação com a Palavra de Deus: ler, explicar e compreender. 

Antes de tudo é necessário ler a Palavra de Deus. Mas esta leitura não é uma leitura qualquer. A leitura da Palavra de Deus tem de ser uma leitura cuidada, programada e didáctica. A liturgia da Palavra jamais se poderá improvisar. Esdras, na leitura que escutamos, escolhe com cuidado o local da reunião e da proclamação da Palavra de Deus. O povo reuniu-se na Porta das Águas, um lugar longe do ruído da cidade e que tinha uma boa acústica. Os que liam a Palavra de Deus não a liam de qualquer maneira mas liam-na de uma forma clara e distinta. Além disso, havia um estrado de madeira que tinha sido feito de propósito para essa ocasião para que assim o leitor pudesse ser visto por todos.

Depois da leitura da Escritura vem a explicação da mesma. Um provérbio antigo diz que “toda a palavra da Bíblia tem setenta rostos”. Assim sendo, é necessário um trabalho de exegese, de desenterrar todos os tesouros que se encontram em cada página da Escritura. Na primeira leitura, ouvíamos como “os levitas liam, clara e distintamente, o Livro da Lei de Deus e explicavam o seu sentido, de maneira que se pudesse compreender a leitura”. Assim sendo, a homília não é algo acessório, dispensável e quanto mais curta melhor. A homília é um momento de extrema importância na liturgia da Palavra. “A homilia é parte da liturgia e muito recomendada: é um elemento necessário para alimentar a vida cristã” (IGMR 65).   É na homília que se desenterram os tesouros escondidos nas leituras proclamadas. Assim sendo, tem de haver um grande cuidado quer do sacerdote na preparação e execução da homília quer dos fiéis na sua escuta. 

O terceiro momento indispensável na proclamação da palavra de Deus é a compreensão. Não uma compreensão meramente intelectual mas uma compreensão alimentada pela inteligência e pelo coração. A escuta da Palavra de Deus deve-nos conduzir, como conduziu o povo da primeira leitura, a um exame de consciência, ao arrependimento e à conversão. As lagrimas que o povo derramou são sinal da sua consciência de não seguirem a Palavra de Deus e são expressão sincera do seu arrependimento. No entanto, não é só às lagrimas do arrependimento que a leitura da Palavra de Deus nos conduz. A Palavra proclamada também é geradora de festa, de alegria e de felicidade: “Hoje é um dia consagrado a nosso Senhor; portanto, não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa fortaleza”. O facto de Deus ainda hoje nos dirigir a sua palavra salvadora e se interessar por nós é fonte de alegria e de festa. Além disto, a Palavra definitiva de Deus nunca é uma palavra de condenação mas de salvação. 

Palavra de Deus encarnada e definitiva é Jesus de Nazaré que a segunda parte do evangelho deste Domingo nos apresenta a iniciar o seu ministério público. Jesus inicia o seu ministério público participando no culto da sinagoga Nazaré. Aí proclama o texto de Isaías sobre o ungido do Senhor onde se indica a missão do Messias: anunciar a boa-nova, proclamar a redenção, dar a vista, restituir a liberdade e proclamar o ano da graça. Depois da leitura, Jesus, como verdadeiro mestre, senta-se e faz a sua homília sobre a Palavra que acaba de proclamar: “cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir”. Jesus não comenta o texto do profeta mas proclama o seu cumprimento. Em Jesus de Nazaré cumprem-se as promessas da salvação. Em Jesus de Nazaré começa o eterno hoje da salvação que deve ser continuado pela acção da Igreja. 

Que a participação nesta eucaristia, onde nos abeiramos não só da mesa do corpo e sangue do Senhor mas também da mesa da Palavra, do ambão onde a Palavra é lida e explicada, nos ajude a compreender melhor a Palavra de Deus, palavra de salvação para o meu hoje concreto.

P. Nuno Ventura Martins

missionário passionista

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