Ano C – II Domingo do Tempo Comum

1ª Leitura: Is 62, 1-5;
Salmo: Sl 95 (96), 1-2a. 2b-3. 7-8a. 9-10ac;
2ª Leitura: 1 Cor 12, 4-11;
Evangelho: Jo 2, 1-11.

A liturgia da Palavra deste II Domingo do Tempo Comum oferece-nos a bela imagem do matrimónio para reflectirmos sobre a relação que Deus estabelece com o seu povo. 

A primeira leitura deste dia é retirada do livro do profeta Isaías, mais precisamente, da terceira parte deste livro, comummente designada de trito-Isaías ou terceiro Isaías. Nesta parte do livro, já estamos no pós-exílio e o povo já regressou a Jerusalém. No entanto, não são sentimentos de alegria e contentamento aqueles que invadem o coração do povo. Com efeito, a cidade ainda está em ruinas e o povo vive numa grande pobreza. Nesta situação, o povo sonha com uma nova Jerusalém e com um novo templo restaurado. Dirigindo-se a este povo desanimado, o profeta, usando a imagem do amor esponsal, anuncia a restauração de Jerusalém.

A Sagrada Escritura utiliza, como imagem privilegiada, para se referir a relação entre Deus e o seu povo a imagem do amor esponsal: Deus é o esposo que ama a sua esposa, o seu povo. Se o amor de Deus é um amor eterno e fiel para com a sua esposa o mesmo não podemos dizer do amor da esposa, do povo para com Deus. Muitas vezes, o povo responde ao amor eterno e fiel com a infidelidade. Na verdade, muitas vezes o povo abandonou o Deus verdadeiro para se entregar e seguir os ídolos. Tal situação leva a que o povo viva na infelicidade.

No entanto, apesar do povo se esquecer de Deus e de o abandonar, Deus nunca se esquece e nunca abandona o seu povo. No meio do sofrimento do povo ressoa a voz do profeta que recorda o amor de Deus, capaz de rejuvenescer o seu povo: “Não mais te chamarão ‘Abandonada’, nem à tua terra ‘Deserta’, mas hão-de chamar-te ‘Predilecta’ e à tua terra ‘Desposada’, porque serás a predilecta do Senhor e a tua terra terá um esposo. Tal como o jovem desposa uma virgem, o teu Construtor te desposará; e como a esposa é a alegria do marido, tu serás a alegria do teu Deus.”

O que o profeta anuncia não se reduz a uma mera reconciliação entre o esposo e a esposa, entre Deus e o seu povo. O que o presente texto profético anuncia é as novas núpcias entre Deus e o seu povo. Deus, apear das infidelidades, continua a amar o seu povo com um amor sempre novo e criador de novidade. É esse amor de Deus pelo seu povo que proporciona o rejuvenescimento do seu povo. 

É esta mensagem de esperança que o profeta sente-se obrigado a anunciar: “Por amor de Sião não me calarei, por amor de Jerusalém não terei repouso, enquanto a sua justiça não despontar como a aurora e a sua salvação não resplandecer como facho ardente”. É esta novidade do Amor fiel e rejuvenescedor de Deus que não devemos parar de anunciar. Na verdade, só este amor é que permite a verdadeira novidade, a verdadeira transformação, a criação de um mundo novo. 

Muitas vezes pensamos que Deus nos ama na medida em que somos bons e belos mas não é assim. Como nos recorda S. Bernardo, “Deus não nos ama porque somos bons e belos; Deus torna-nos bons e belos porque nos ama”. Só o Amor de Deus é a força eficaz de mudança. É o amor de Deus que de vidas sofridas pela infidelidade do pecado faz surgir existências novas, reconciliadas e reconciliadoras. Assim sendo, não podemos repousar enquanto não chegar a todos a alegre notícia do amor rejuvenescedor de Deus. Não podemos descansar enquanto não levarmos todos os homens a encontrarem-se com o amor, ressuscitado e ressuscitador, de Deus por todos e cada um.

O cumprimento da profecia da restauração da relação e consequente felicidade, anunciada por Isaías, cumpre-se em Jesus de Nazaré, como podemos constatar no evangelho deste dia.

A página evangélica que a liturgia hoje nos oferece é o episódio das bodas de Caná. Mais uma vez, estamos no âmbito de um casamento, deste símbolo privilegiado quer da relação de Deus com o seu povo (Antigo Testamento) quer de Cristo com a Igreja (Novo Testamento). Por isso, nestas bodas não falta o novo e definitivo esposo que é Cristo e a esposa que é a comunidade. Estamos assim no âmbito da aliança, melhor dizendo, da nova aliança.

O episódio das bodas de Caná é um episódio exclusivo do evangelista João e pertence à secção introdutória do seu evangelho onde se pretende apresentar a identidade e a missão de Jesus. Além disto, este episódio é designado de sinal, ou seja, a mudança da água em vinho no contexto de um casamento não é um simples milagre mas um sinal, uma acção simbólica que nos convida a ir além das aparências. Os sinais em São João não são simples milagres mas algo que desperta e conduz à fé em Jesus. Não uma fé como crença numa determinada verdade mas como relação com uma pessoa que nos oferece a salvação. 

Começa este episódio evangélico com uma situação negativa: a falta de vinho. O vinho é uma presença imprescindível num casamento e é o símbolo do amor, da alegria e da festa. Sabendo então que o casamento é o símbolo da relação, da aliança de Deus com o seu povo e que o vinho é o símbolo do amor entre Deus e o seu povo, podemos concluir que aquilo que o evangelista nos pretende indicar é que a antiga aliança é incapaz de oferecer a alegria da relação, do encontro amoroso entre Deus e o seu povo. Esta realidade também está indicada na referência às seis talhas de pedra destinadas à purificação que estavam vazias. Na verdade, o número 6 é o número da imperfeição, a pedra evoca-nos as tábuas da lei e o coração de pedra dos homens (Ez 36,26), a purificação evoca-nos os ritos e exigências da antiga aliança e o facto de estarem vazias atesta que os ritos da antiga aliança já não servem para aproximar o homem de Deus. 

Atenta a esta situação de indigência está a Mãe de Jesus. Maria é a crente que sabe estar atenta às necessidades dos seus filhos. Ela sabe descobrir as situações intoleráveis e intercede por elas a Jesus: “Não têm vinho”. 

Jesus parece dar-lhe uma resposta dura: “Mulher, que temos nós com isso? Ainda não chegou a minha hora”. O termo “mulher” é uma referência a Eva, mãe de todos os viventes. Ao tratar sua mãe por “mulher”, Jesus não lhe mostra desrespeito mas aponta para o novo povo que está a nascer e de que ela é mãe.

Maria nos dois textos joaninos em que intervém (bodas de Caná e crucifixão e morte de Jesus) aparece relacionada com a Hora de Jesus. A Hora de Jesus, segundo São João, é o seu Mistério Pascal. Fica assim claro que só a Hora de Jesus, só o seu Mistério Pascal é que inaugurará a nova e eterna aliança do homem com Deus: “Este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança que será derramado por vós e por todos para a remissão dos pecados”. É do costado aberto de Cristo na Cruz que brota o vinho da nova aliança. É da Páscoa do Senhor que nasce o novo Povo de Deus. 

De seguida, Maria dirige-se aos serventes, àqueles que estão dispostos a colaborar com Jesus: “Fazei o que ele vos disser”. Palavras que ainda hoje repete a todos aqueles a quem falta o vinho do amor, da alegria e da festa e que outra coisa não são que a síntese de toda a vida de Maria. É assim que ela se apresenta no momento da encarnação: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra” (Lc 1, 38).

E é na medida que os homens seguem o conselho de Maria, ou seja, na medida em que ouvem a palavra de Jesus e a põem em prática, que surge o vinho novo da alegria, da relação com Deus. Fica claro que tudo isto é dom, mas que todos nós, como bons serventes, temos de colaborar pondo em prática o conselho de Maria: “Fazei o que ele vos disser”.

P. Nuno Ventura Martins

missionário passionista

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