Ano C – IV Domingo do Tempo Comum

1ª Leitura: Jer 1, 4-5. 17-19;
Salmo: Sl 70 (71), 1-2. 3-4a. 5-6ab. 15ab e 17;
2ª Leitura: 1 Cor 12, 31 – 13, 13 ou 1 Cor 13, 4-13;
Evangelho: Lc 4, 21-30.

Escutávamos, no evangelho do Domingo passado, o discurso inaugural de Jesus na sinagoga de Nazaré. Aí, depois de ter lido um texto do profeta Isaías sobre o Messias, sobre o ungido do Senhor e a sua missão, Jesus comenta-o da seguinte forma: “cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir”. Jesus afirma que em si e na sua missão se cumpre a promessa messiânica que Isaías anunciava no seu oráculo. Jesus apresenta-se como o Messias, como o ungido do Senhor que anuncia a boa-nova aos pobres, que proclama a redenção aos cativos e a vista aos cegos, que restitui a liberdade aos oprimidos e proclama o ano da graça do Senhor. 

Depois da leitura do profeta Isaías e da auto-aplicação que Jesus faz dela à sua pessoa e à sua missão, segue-se a reacção dos habitantes de Nazaré à acção e às palavras de Jesus. Poderíamos estar a espera que a reacção do povo de Nazaré fosse um entusiasmado acolhimento de Jesus e uma alegria, porque as promessas salvadoras de Deus estavam a cumprir-se na sua pessoa. No entanto, a reacção do povo foi a rejeição. O povo de Nazaré, mais interessado num Messias milagreiro que se impusesse pela via da força e do espectáculo, é incapaz de reconhecer em Jesus de Nazaré o Messias. 

Para os habitantes de Nazaré, terra onde Jesus se tinha criado, Jesus não era mais do que o filho de José. Os conterrâneos de Jesus pensavam conhecê-lo demasiado bem. Para eles, Jesus não pode ser o Messias prometido pelos profetas e esperado pelo povo. Manifesta-se aqui o escândalo da encarnação, de um Deus feito homem em Jesus de Nazaré. 

Ante esta reacção do povo, Jesus cita dois provérbios (“médico, cura-te a ti mesmo” e “nenhum profeta é bem recebido na sua terra”) e compara a sua acção com a de Elias e Eliseu que socorreram estrangeiros em vez de auxiliarem os membros do seu povo. Quer os provérbios, que se insurgem contra uma concepção de um Messias milagreiro que se impõe pela via da força e do espectáculo, quer os exemplos citados de Elias e Eliseu, que demonstram que a salvação de Deus se estende a todos os povos, originam um aumento do confronto entre o povo e Jesus: “ao ouvirem estas palavras, todos ficaram furiosos na sinagoga. Levantaram-se, expulsaram Jesus da cidade e levaram-n’O até ao cimo da colina sobre a qual a cidade estava edificada, a fim de O precipitarem dali abaixo”. Os habitantes de Nazaré não só rejeitam a proposta de Jesus como tentam eliminá-lo. Preanuncia-se aqui a incredulidade de Israel e a perseguição de Jesus até à morte na cruz.  

Ante esta rejeição e perseguição, Jesus não desiste e prossegue o seu caminho: “mas Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho”. Nada e ninguém é capaz de impedir o avanço do Evangelho. Esta é uma mensagem consoladora para nós. Na verdade, o eterno hoje da salvação iniciado por Jesus na sinagoga de Nazaré continua hoje pela acção da Igreja. E também hoje a Igreja depara-se com a rejeição e a perseguição que o próprio Jesus se deparou. Assim sendo, a indicação de Lucas que “Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho”, que alguns interpretam como uma alusão à ressurreição, é uma mensagem de consolação e de esperança para a Igreja. No anúncio do evangelho, os discípulos de Jesus deparar-se-ão com oposições, incompreensões e hostilidades. No entanto, à imagem de Jesus, a Igreja, passando pelo meio dessas dificuldades, deve continuar, no nosso mundo, o eterno hoje salvífico de Deus iniciado naquele sábado na sinagoga de Nazaré. 

Para quem desconhece a essência do cristianismo e do ser cristão, está fidelidade à obra salvífica que enfrenta a perseguição, o sofrimento e a discriminação pode ser vista como algo sem sentido. Quantos de nós, ao sabermos de pessoas que sofreram pela sua fidelidade aos valores evangélicos quando poderiam ter evitado tais sofrimentos se pusessem de lado esses valores, não os consideramos imprudentes?  

Talvez por isto, a liturgia da Palavra nos apresenta, neste Domingo, uma perola da literatura bíblica que indica qual é a essência do cristianismo e do ser cristão. Refiro-me ao capítulo 13 da primeira carta do apóstolo Paulo aos coríntios que escutávamos na segunda leitura deste dia e que é conhecido como o hino ao amor. De uma forma lírica, Paulo apresenta a uma comunidade que se encontrava dividida e que só procurava os benefícios próprios o caminho por excelência, o valor mais alto que se pode aspirar e desejar e que deve orientar toda a nossa vida: a caridade! 

O hino ao amor pode ser dividido em três partes. Na primeira parte (13, 1-3), Paulo começa por afirmar a superioridade e a necessidade da caridade. Paulo recorda-nos que o amor é a alma de tudo aquilo que possamos fazer. Mesmo os gestos e as acções mais meritórias sem o amor nada são. Ainda que falemos muitas línguas, que na linguagem paulina são símbolo não só de uma abundante cultura mas também de uma forte experiência mística, se não o fizermos com amor seremos apenas instrumentos ruidosos incapazes de comunicar e de criar comunhão. Ainda que tenhamos o dom da profecia, da ciência e da fé se não tivermos amor não seremos nada. Ainda que ofereçamos todos os nossos bens aos pobres e até entreguemos a nossa vida em defesa de uma causa justa, se não tivermos amor as nossas obras não serão mais do que gestos de auto-glorificação e de vaidade sem proveito algum. É por isto que S. João da Cruz nos recorda que “no entardecer da vida seremos julgados pelo amor!” As obras que realizamos não valem por si mas pelo amor com que as realizamos. Só o amor dá o verdadeiro sentido às coisas. E nós conhecemos bem esta realidade. Na verdade todos nós já experimentamos que quando fazemos uma coisa com e por amor, por muito difícil que essa coisa seja, ela torna-se fácil e gozosa. 

O amor, a caridade de que Paulo fala não é um mero sentimento mas uma realidade bem concreta, tão concreta quanto a nossa vida real. O amor que Paulo fala neste hino não é o amor egoísta mas o amor fraterno, gratuito, desinteressado e sincero. Assim sendo, Paulo, na segunda parte do seu hino (13, 4-7), apresenta este amor através de uma enumeração de 15 das suas características/qualidades. Sete dessas características são formuladas positivamente e oito de forma negativa. É curioso que Paulo descreve o amor com 15 verbos e sem nenhum adjectivo, sugerindo assim o aspecto dinâmico do amor. Para Paulo “a caridade é paciente, a caridade é benigna; não é invejosa, não é altiva nem orgulhosa; não é inconveniente, não procura o próprio interesse; não se irrita, não guarda ressentimento; não se alegra com a injustiça, mas alegra-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Esta descrição que o Apóstolo Paulo faz da caridade deixa bem claro que o amor não é um mero sentimento mas é uma realidade bem concreta que nos deve animar em todas as circunstâncias da nossa vida quotidiana, mesmo nas mais simples e banais.

Na terceira e última parte do seu hino (13, 8-13), Paulo compara o amor com os restantes carismas e apresenta a sua perfeição e perenidade. Para Paulo só o amor é eterno, só ele é a única coisa perfeita. Todos os outros carismas passarão, serão esquecidos, serão desnecessários. Só o amor não acabará. Só o amor é eterno e gerador de eternidade.  

O apóstolo Paulo deixa bem claro que é o amor a essência do cristianismo e do nosso ser cristão. Foi o amor a Deus e ao próximo que levou Jesus a prosseguir o seu caminho de anúncio da boa-nova e de instauração do Reino de Deus, caminho esse que o levou até a morte de Cruz, “a maior e mais maravilhosa obra do amor de Deus”. É este mesmo amor que deve guiar a Igreja e os cristãos na sua missão de continuar o hoje salvífico iniciado por Jesus na sinagoga de Nazaré.

P. Nuno Ventura Martins

missionário passionista

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