1ª Leitura: Gen 14, 18-20; Salmo: Sl 109, 1. 2. 3. 4; 2ª Leitura: 1 Cor 11, 23-26; Evangelho: Lc 9, 11b-17.
Celebramos hoje a solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo. Esta festa nasceu na Bélgica, em 1247, e foi estendida a toda a Igreja, pelo papa Urbano IV, em 1264, como resposta à heresia de Berengário de Tours que negava a transubstanciação, isto é, negava a “conversão de toda a substância do pão na substância do Corpo de Cristo e de toda a substância do vinho na substância do seu Sangue” que se realiza “na oração eucarística mediante a eficácia da palavra de Cristo e a acção do Espírito Santo” (compêndio do Catecismo da Igreja católica, 283), ou seja, negava a que Cristo está verdadeiramente presente na eucaristia sob a aparência de pão e vinho.
Assim sendo, a festa de hoje é um convite a reflectirmos sobre a realidade da Eucaristia e sobre o lugar que ela ocupa na vida da Igreja. As leituras deste dia ajudam-nos nesta tarefa.
Um dos 4 relatos de instituição da eucaristia presentes no Novo Testamento é o de Paulo aos cristãos de Corinto que hoje nos é oferecido como segunda leitura. Este é a primeira narração escrita da instituição da eucaristia. O presente trecho da carta paulina ajuda-nos a compreender a fé católica que afirma que a Eucaristia é “o memorial da sua morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é concedido o penhor da glória futura” (Sacrosanctum Concilium, 47).
A Eucaristia é um memorial, porque, sempre que a Igreja, fiel ao mandato do Senhor (“fazei isto em memória de mim”), celebra a eucaristia anuncia a morte do Senhor até que Ele venha. “Sempre que no altar e celebrado o sacrifício da Cruz, em que foi imolado Cristo, nossa Páscoa, realiza-se a obra da redenção” (Lumen Gentium, 3). O memorial é muito mais que uma simples evocação do que aconteceu no passado. Enquanto memorial, a eucaristia torna presente, de uma forma sacramental, o mistério pascal de Cristo.
Além de memorial, a eucaristia é também o banquete em que se recebe Cristo, porque “Cristo está sempre presente … sobretudo sob as espécies eucarísticas.” (Sacrosanctum Concilium, 7). Acreditamos que Jesus está presente nas espécies do pão e do vinho de uma forma real não porque as outras formas de presença (Palavra de Deus, Igreja, ministros, sacramentos, pobres, …) não sejam reais mas porque a presença eucarística é-a por antonomásia. Na instituição da eucaristia, Jesus disse, como escutávamos na segunda leitura de hoje: “Isto é o meu corpo … este cálice é a nova aliança no meu sangue” e não isto simboliza o meu corpo e o meu sangue. Nas espécies eucarísticas Jesus esta verdadeiramente presente e isto deve levar-nos a um grande respeito e a uma maior intimidade com Ele.
A comunhão do corpo e sangue de Cristo tem como efeito a intimidade a e a comunhão de vida com Jesus. Tal união com Cristo deve levar-nos a identificarmo-nos com Jesus e a comprometermo-nos com o seu projecto. Assim como quando comemos o pão material ele é assimilado e torna-se parte de nós, assim quando comungamos o corpo e o sangue de Cristo devemos ir-nos identificando com Jesus e com o seu projecto.
No entanto, a eucaristia não é uma realidade que se reduza à nossa relação com Deus. A eucaristia também tem consequências na nossa relação com os irmãos: “ao participar realmente do corpo do Senhor, na fracção do pão eucarístico, somos elevados à comunhão com Ele e entre nós” (Lumen Gentium, 7). Ajuda-nos a compreender esta realidade quer o contexto em Paulo escreve a primeira carta aos coríntios quer o evangelho deste dia.
Paulo vê-se na necessidade de resolver os problemas de divisão e de discriminações na comunidade de Corinto. Na verdade, quando os Coríntios se reuniam para celebrar a eucaristia cometiam alguns abusos. O primeiro desses abusos era as divisões que existem na comunidade (cf. 1 Cor 11, 18-19). O segundo abuso relacionava-se com a relação entre a refeição profana e a ceia do Senhor (cf. 1 Cor 11, 20-22). Na verdade, nestes tempos a eucaristia celebrava-se em casas particulares e costumava ser precedida por uma refeição em comum. O problema é que os mais ricos da comunidade traziam os seus alimentos e começavam a comer antes de chegarem os mais pobres e necessitados. Em vez de esperarem que a assembleia estivesse completa e que os alimentos trazidos por uns e por outros fossem distribuídos equitativamente, os mais ricos apressavam-se a comer a sua parte sem esperar a chegada dos mais pobres, que devido aos seus trabalhos e ocupações se atrasavam. E era assim, estando uns satisfeitos e muitas vezes bêbados e outros famintos, que os coríntios celebravam a eucaristia. No entanto, esta eucaristia não era sinal de comunhão, mas ocasião de descriminações na comunidade. Para resolver estes problemas, Paulo apela para a tradição da instituição da eucaristia que ele próprio recebeu, evocando o espírito com que Jesus institui a eucaristia. Jesus não procura o seu próprio interesse mas entrega-se à morte por nós. Assim sendo, devemo-nos examinar sobre a forma como celebramos a eucaristia. As nossas eucaristias são celebradas no espírito de Jesus que se entrega por nós à morte ou são celebradas no meio de divisões, descriminações e injustiças?
Também o evangelho deste dia nos chama a atenção para o espírito de comunhão e partilha que deve reinar nas nossas eucaristias. No episódio evangélico de hoje, a versão de Lucas da multiplicação dos pães, chama-nos à atenção às diferentes atitudes que tem Jesus e os discípulos ante a multidão faminta. Os discípulos, dando-se conta que estavam no deserto e de que a hora ia avançada, pedem a Jesus que mande embora as pessoas. No entanto, Jesus, cheio da compaixão que se traduz no anúncio do reino e na cura dos doentes, ordena aos discípulos “dai-lhes vós mesmos de comer”. Também a nós, que vivemos neste mundo em que a fome quer de pão quer de razões de vida fustiga tantos irmãos nossos, se dirige esta interpelação de Jesus: não ignoreis a indigência dos irmãos mas oferecei e partilhai alimentos e razões de vida. Como os discípulos, também nós nos devemos estar a perguntar como será isso possível uma vez que só temos “cinco pães e dois peixes”, uma vez que são tão exíguos os nossos recursos?
O milagre da multiplicação dos pães é uma boa lição, em três momentos, de como podemos responder a este desafio de Jesus. A primeira lição que Jesus nos oferece é que todos nós temos responsabilidade diante da fome do mundo. A comunidade cristã não se pode limitar a constatar a realidade da fome do mundo. A comunidade cristã, a exemplo do coração compassivo de Jesus, não pode ficar indiferente diante do sofrimento do mundo. A segunda lição de Jesus neste milagre ensina-nos a dar resposta ao desafio que se nos apresenta. Ante a fome deste mundo temos de aprender a partilhar tudo o que somos e temos. É isto que se quer simbolizar com os cinco pães e dois peixes. São sete os elementos que se partilham, e sete é o número da totalidade. Devemos aprender a partilhar tudo o que temos e somos. Só a partilha é que é capaz de resolver a fome do mundo. A terceira lição de Jesus refere-se ao motivo da partilha. Devemos partilhar o que temos e somos porque aquilo que possuímos é um dom de Deus. É por isso que Jesus erguendo os olhos ao céu pronuncia a bênção, recita aquela oração onde se dá graças a Deus pelos bens recebidos e onde se reconhece que aquilo que possuímos é dom de Deus. E se é dom de Deus é para ser partilhado. Nos não somos donos mas administradores dos dons de Deus. Em tempos de crise económica e de valores temos de reavivar o ensinamento evangélico que o Vaticano II nos transmitiu: “quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si mas também aos outros” (Gaudium et Spes, 69).
E é assim que a comunidade partilhando tudo aquilo que tem e através da bênção de Deus que nos leva a reconhecer que os alimentos são dom de Deus para todos e não posse exclusiva de alguns que a fome daquela multidão é saciada. E não só é saciada a fome da multidão como as sobras ainda enchem 12 cestos. Doze eram as tribos do povo de Deus, a totalidade do Povo de Deus. Dizer que as sobras encheram 12 cestos quer dizer que quando a comunidade for capaz de partilhar a totalidade do que tem e é o problema da fome do mundo terminará.
Que a celebração da eucaristia, mesa comum que Deus prepara para todos os seus filhos e a todos oferece o pão da vida, nos ensine o valor da partilha. Na verdade, outra coisa não é o convite de Jesus, “dai-lhes vós de comer” do que a eucaristia continuada no mundo.
P. Nuno Ventura Martins
missionário passionista