“Este é o Rei dos judeus”
No último domingo do ano litúrgico, como a dizer que toda a história está orientada a Cristo, celebramos a Solenidade de Cristo Rei.
A presente festa foi instituída por Pio XI em 1925. Viviam-se tempos difíceis: pós primeira guerra mundial, ateísmo, secularização, laicismo, … Como tentativa de promoção do reino social de Cristo, ou seja, de promover a militância católica e ajudar a sociedade a revestir-se dos valores cristãos foi instituída esta festa que até à reforma litúrgica se celebrava no último domingo de Outubro. Com a reforma litúrgica pós-conciliar esta festa passou a celebrar-se no último domingo do ano litúrgico e a ter um sentido universal, escatológico e espiritual.
As leituras desta celebração ajudam-nos a perceber melhor o sentido da realeza de Cristo que se manifesta na Cruz.
Cada vez que contemplamos a Cruz de Cristo não podemos deixar-nos de espantar com a insensatez humana que ela nos apresenta: um crucificado, um maldito para a lei (cf. Dt 21, 23) e um homem desonrado para o império (só os escravos e os desertores do império eram crucificados devido ao carácter ignominioso desta prática) que é apresentado como rei: “Este é o Rei dos judeus”.
Cruz de Cristo e realeza de Cristo: dois temas inseparáveis que nesta festa de Cristo Rei somos convidados a reflectir, assimilar, celebrar e viver.
No entanto, quando utilizamos o termo rei vem-nos logo à mente riquezas, poder, exércitos, guerras, vitórias, vida sumptuosa… Assim sendo, parece-nos uma loucura juntar Cruz de Cristo e realeza. No entanto, é esta a sabedoria da Deus que é loucura para o mundo. (cf. 1 Cor 1, 17-25)
O trecho evangélico deste domingo convida-nos a contemplarmos a cruz de Cristo e aí descobrirmos a sua realeza.
O evangelho deste domingo coloca-nos no calvário diante do Senhor Crucificado. Chegamos ao destino da longa caminhada de Jesus que se iniciou no capítulo IX de Lucas em direcção a Jerusalém. Durante esta caminhada Jesus foi anunciando o reino e formando os discípulos a viver segundo a lógica do reino. No calvário, estamos diante da última e suprema prova do amor e da fidelidade de Jesus a Deus e aos homens.
No centro desta perícope evangélica está a afirmação: “Este é o Rei dos judeus”. O motivo da condenação, que está suspenso sobre a cruz, indica-nos o tema deste texto. Na verdade, temos aqui várias leituras, levadas a cabo por várias personagens, da realeza de Cristo que nos ajudam a descobrir qual é a verdadeira realeza de Cristo.
Começam os chefes dos judeus: “salve-Se a Si mesmo, se é o Messias de Deus, o Eleito”. Seguem-se os soldados “Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo”. E nesta linha também um dos malfeitores que tinha sido crucificado com Jesus: “Não és Tu o Messias? Salva-Te a Ti mesmo e a nós também.” Três maneiras de conceber a realeza que coincidem. Rei é aquele que tem poder. Rei é aquele que triunfa. Rei é aquele que confunde os adversários. Rei é aquele que derrota e sai vitorioso. No entanto, Jesus não corresponde a concepção real da religião, do poder político e das nossas expectativas pessoais.
Vemos aparecer aqui de novo o tentador, que tentou Jesus no deserto (Lc 4, 1-13). Dizia-nos o episódio das tentações que o tentador, aquele que dispersa, aquele que nos tenta afastar do caminho a seguir, “se afastou até tempo oportuno”. A hora da cruz é o tempo oportuno em que ele reaparece, pela boca dos chefes dos judeus, dos soldados e do malfeitor, para o tentar na sua consciência filial e na sua missão.
No entanto, Jesus permanece fiel no amor e não baixa da cruz. E é neste contexto, que o texto nos aparece outra leitura da realeza de Cristo no trono da cruz. “Jesus, lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza”, diz o outro malfeitor crucificado com Jesus que a tradição chamou de bom ladrão. O estar ao lado de Jesus crucificado levou este malfeitor a descobrir quem era e quem era Jesus.
Contemplar a Cruz é contemplar-nos e contemplar quem é Deus. Na Cruz está exposto aos nossos olhos, como num espelho, aquilo que o Homem é e o que é capaz de fazer. Na Cruz de Cristo o homem descobre o seu pecado e os efeitos desse pecado. Contudo, esta leitura da Cruz de Cristo não nos pode e não nos deve desesperar mas levar ao arrependimento e à conversão. A Cruz de Cristo não existe para condenar mas para salvar, ela é o remédio para a mortal enfermidade humana. A Cruz de Cristo é a história do Amor trinitário pelo mundo. A Cruz de Cristo é a história das entregas de Deus. É este amor que se entrega que é o remédio que se nos oferece. É esta a realeza de Jesus que se oferece, que perdoa, de quebra o círculo de violência e que é capaz de nos reabilitar.
O Bom ladrão soube ler a realeza de Jesus na cruz. Jesus na cruz oferece uma proposta de salvação e de vida. O bom-ladrão reconheceu-a e aceitou-a. Assim sendo, pede a Jesus “lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza”. “Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso”, foi a resposta de Jesus. A cruz de Cristo é a manifestação da sua realeza: um amor que vai até a morte para dar vida ao homem! A realeza de Jesus realiza-se no amor, no serviço, no perdão e dom da vida para a salvação do mundo.
A celebração desta solenidade não nos pode deixar indiferentes. Na verdade, reconhecer que o nosso rei é o do Senhor Crucificado leva-nos a viver um estilo de vida muito concreto. “Um reino eterno e universal: reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz” é assim que nos apresenta o reino de Deus o prefácio desta solenidade. A Igreja e cada um dos cristãos são chamados a construir este reino. Reconhecer a realeza de Cristo na cruz compromete-nos com a construção do reino. Não basta rezar no pai-nosso “venha a nós o vosso reino”. É necessário que eu aceite este reino na minha vida pessoal e assim o vá dilatando na vida social.
“Este é rei dos judeus”. É o Senhor crucificado e não outro o nosso rei. Isto desinstala-nos e leva-nos a estar no mundo de uma forma concreta. Aceitar a realeza de Cristo não é viver na lógica do poder mundano que escraviza e destrói mas na lógica da Cruz de Cristo: amor, serviço, perdão e dom da vida para a vida do mundo!
P. Nuno Ventura Martins,
missionário passionista