Seminário da Santa Cruz dos Missionários Passionistas
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Santa Maria da Feira, Portugal
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Homilia da celebração eucarística do padre Luigi Vaninetti

Queremos, hoje, deixar-nos interrogar pela Palavra. Esta provoca a realidade, sem mistificações ou sem bonomias. Esta move-se nos limites das relações que nós mesmos vivemos, iluminando-as e curando-as, através do evento de Cristo que nos atinge. O Evangelho provoca-nos a perdoar “não sete vezes, mas setenta vezes sete”. A chamada de atenção, para quem tem familiariedade com a Palavra de Deus, é o cântico de Lamech. No livro do Génesis, de facto, quando a violência fratícida de Caino se desencadeia, o mal torna-se numa força sem controlo que só a lei do Talião parece limitar. Diante tal, Lamech responde de maneira diferente: “Matei um homem porque me feriu, e um rapaz porque me pisou. Se Caim foi vingado sete vezes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete.” Este grito exprime a explusão da vingança. A questão interpela-nos: “quantas vezes deverei perdoar?”.

Parece que para o pio israelita, perdoar três vezes fosse uma obra meritória; perdoar quatro vezes representava uma obra super meritória. Parece-nos que discípulo de Jesus é chamado a perdoar sete vezes… Mas Jesus tira-nos desta lógica! Já não interessam as lógicas meritórias ou super meritórias, não conta o cálculo. Há uma lógica diferente: a lógica da novidade do Reino. Não a lógica do mérito mas a lógica do encontro do Reino! A parábola de hoje ilumina-nos sobre isto.

A parábola está construída em três cenas.

A primeira cena é inverosímil: um tal devia 10000 talentos, isto é, 10000 anos de trabalho. Exagerado, não chega uma vida para abater este débito! Nada o pode saldar. É inverosímil porque, neste texto, fala da relação entre Deus e o homem. Esta linguagem alusiva quer explicar-nos em que horizonte estamos. Para além disso, vemos como a oração do servo seja uma oração muito pobre, que parece dizer: “tem paciência, mais um pouco, e solucionarei tudo!”. Que oração pobre a sua! É a nossa oração! E mesmo assim, o coração do patrão se sente tocado: a makrothimia (μακροθυμία) do patrão que perdoa tudo! É uma alusão À relação de Deus connosco e nós com Ele.

A segunda cena entra no real, aquilo que nós chamamos o real das nossas relações históricas. Desta vez, em posição de maior relevância, encontramos não um rei o ou patrão, mas o servo. E o servo relaciona-se com um servo seu, ou seja, um seu semelhante. O débito é de 100 denários: 100 dias de trabalho. Um débito mas com um pouco de empenho, solucionável. Enquanto que na primeira cena, o débito era inverosímil, agora é extinguível. Notai que o servo da segunda cena pede com a mesma oração usada na primeira cena. O servo pede ao servo, seu semelhante: “tem paciência comigo!”, mas desta vez, esta não é acolhida, não obtém compaixão. Ao fim da parábola será a denúncia do discípulo que recebe perdão mas não sabe perdoar; recebe misericórdia mas não sabe ser misericordioso; é inspirado pela Graça mas não saber dar graças! Eis a denúncia de Jesus; eis a novidade do Reino. Uma lei que via para além da lei, a novidade da experiência de Deus que se torna novidade nas relação, em que o perdão, isto é, o dom de si, torna-se o centro da relação. Isto, na nossa vida fraterna, é importante.

Concluo, então, com a primeira leitura do cântico de Daniel, que foi objeto da Lectio feita na última Assembleia Provincial e que foi uma Lectio penitencial. “Não temos chefe, nem guia nem profeta, nem holocausto nem sacrifício, nem oblação nem incenso, nem lugar onde apresentar-Vos as primícias para alcançar misericórdia”. Parece ouvir ressoar as questões de ontem sobre o desagrado que somos chamados a habitar. Diante deste, a tentação é querer encontrar, imediatamente, uma solução. Mas neste desagrado, o profeta diz-nos: “E agora Vos seguimos de todo o coração, Vos tememos e buscamos o vosso rosto.” Ontem o padre Geral convidava-nos a refletir sobre o que quer dizer procurar, ansiar, o rosto de Deus. Somos chamados, na verdade, a segui-l’O hoje, nesta realidade, na qual algumas referências foram desleixadas. Talvez também nós não tenhamos sido fiéis; talvez estejamos a abandonar a via da fidelidade. Queremos, portanto, hoje, antes de mais, reaquistá-la?

Que o Senhor nos ajude nesta aventura pessoal e comunitária a ser discípulos. Discípulos marcados de feridas e limites da história, marcados de feridas e limites pessoas, mas, não obstante tudo, em caminho confiantes da fidelidade de Deus.